31 de janeiro de 2006

Uma segunda opinião

Em Portugal, a prática diplomática e a reflexão sobre as opções possíveis no quadro da acção externa não andam, necessariamente, de mãos dadas. As exigências do trabalho quotidiano conduzem, muitas vezes, a excessos de pragmatismo, ao refúgio em visões meramente descritivas, à tentação de justificar a posteriori o que foi feito ou dito. Verdade seja que a cultura convencional das Necessidades foi quase sempre algo avara quanto a estimular a propositura de caminhos para a política externa, como que a reservar esta para o domínio exclusivo dos agentes políticos. Assim, não é de estranhar que muitos diplomatas, quando chamados a pronunciar-se sobre cenários de intervenção externa, se refugiem numa mera e cómoda colagem ao ar do tempo, limitando-se a tentar interpretar, com maior ou menor criatividade, o que pressentem que o poder político deseja ouvir ou ler.

Curioso, contudo, será observar que, não obstante todas essas limitações, os frutos de tais trabalhos acabam, não raramente, por se revelar bastante informados e imaginativos, o que prova que o potencial existe, que os profissionais da diplomacia portuguesa têm todas as condições para poderem ir muito mais longe na prestação do seu contributo substantivo para as opções da política externa do país, desde que a tal induzidos. A circunstância de disporem da experiência prática qualifica bastante essas elaborações, em especial face a trabalhos congéneres de think tanks ou de meios académicos, quase sempre situados num universo excessivamente teórico. Além disso, o facto das forças políticas no nosso país produzirem quase sempre muito escassa doutrina criativa sobre política externa, que exceda meras reflexões conjunturais, muitas vezes marcadas pela polémica confrontacional, pode tornar ainda mais interessantes tais contribuições.

Grande parte dos textos que este livro recolhe são o resultado de um esforço de remar um pouco contra esta maré, de tentar assumir, enquanto profissional da diplomacia, uma intervenção regular de avaliação dos caminhos que se oferecem ao país em algumas áreas determinantes para a sua projecção e prestígio externos. Não se trata de contrapor uma linha alternativa às orientações seguidas no passado, quaisquer que elas sejam, até porque, as mais das vezes, essas mesmas orientações mais não foram senão o reflexo de meras rotinas de comportamento e reacção diplomática. Porque reiteradas ao longo do tempo, tais práticas surgem dignificadas como opções de política, constituindo-se como parte do chamado consenso em matéria de política externa, o qual, infelizmente, tem funcionado muitas vezes como factor inibidor da normal diversidade opinativa.

Perante os novos desafios da sociedade internacional, o nosso país tem rapidamente de entender que a simples repetição obsessiva de um paradigma diplomático, por muito coerente que ele se nos apresente, não substitui a importância de saber construir uma política externa pró-activa, que saiba adaptar-se às mudanças no cenário global e que possa, a cada momento, interpretar e reflectir os interesses que compete ao país defender nesse domínio. Não perceber a diferença entre as duas coisas, como frequentemente se vê, é condenar Portugal à irrelevância no quadro internacional ou, pior ainda, à dependência de estratégias alheias, em cuja definição só simbolicamente participamos. O que só contribui para aumentar ilusões e mitos sobre o real papel do nosso país no mundo.

Sendo que a forma é, em si mesma, uma dimensão do conteúdo, assumo que alguns dos textos incluídos neste volume podem ser vistos como saindo um pouco do tom “politicamente correcto” com que alguns dos temas são vulgarmente tratados entre nós, até porque não fogem a tentar avaliar, com frontalidade, certos aspectos tidos por mais polémicos. É nessa perspectiva que se constituem, com gosto, numa “segunda opinião" face à matriz de abordagem prevalecente. Deixo ao leitor a produção do juízo final sobre o eventual sucesso desta tentativa.

Este livro agrega reflexões produzidas ao longo dos últimos anos sobre temas que entendi importantes para o papel de Portugal como actor internacional. Textos com data e que, algumas vezes, reiteram algumas ideias e conceitos, como é da natureza destas coisas. Numa incursão na primeira pessoa, atrevi-me a juntar dois textos de polémica sobre a imagem pública dos diplomatas portugueses e, por fim, breves memórias sentidas de factos e pessoas marcantes no cenário global recente. Concedo que, de todo este conjunto de textos, ligados apenas pela busca de alguma coerência na forma de ver o mundo e o papel de Portugal nele, não resulta nunca um olhar indiferente ou neutral. Mas isso é uma inevitabilidade, porque a visão de cada um constrói-se sempre a partir do lugar onde se está ou em se que foi colocado.

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Termino com um agradecimento a quantos, em particular nos últimos anos, souberam dar-me testemunho permanente da sua lealdade e amizade. Neles ocupa lugar singular a minha Família, a quem dedico este trabalho.

Uma palavra especial para Jorge Sampaio, que teve a disponibildade amiga para prefaciar este volume. A minha geração fica a dever-lhe um raro legado de ética e integridade política.

(Nota introdutória ao livro "Uma Segunda Opinião - notas de política exterma e diplomacia", Dom Quixote, Lisboa, 2006)

29 de janeiro de 2006

Em torno da Constituição europeia


A questão de saber-se se a Europa, não sendo ainda um Estado, pode, ou não, ter uma Constituição é um belo debate académico. Mas o que aqui nos ocupa é a dimensão política do problema, o que levou muitos a optarem, com compreensível prudência, pela ambiguidade semântica do conceito de “tratado constitucional”.

A entidade União Europeia, que nasce alguns anos depois da criação das Comunidades Europeias, é o produto de sucessivos Tratados que foram regulando os avanços da integração e, nas entrelinhas, deixando presumidos caminhos para a sua futura evolução. Em pouco mais de 10 anos, a Europa foi servida pelos Tratados de Maastricht, de Amsterdão, de Nice e, agora, pela Constituição Europeia. Só por um milagre, esta obsessão revisionista não criaria, no imaginário público, um sentimento de grande instabilidade institucional, a ideia de que, aprovasse-se o que se aprovasse, vinha logo ali adiante um novo tratado a alterar o anterior.

Para os crentes neste modelo, estávamos perante uma inevitabilidade. Era a teoria da “bicicleta de Delors”, que tinha de continuar em andamento, porque, se parasse, cairia ao solo. A palavra de ordem era ter “ambição” europeia e, dia após dia, conseguir pôr mais uma pedra na construção integradora, alargar as políticas comuns, forçar a aproximação e a tendencial harmonização das restantes áreas cuja coerência se revelasse essencial para a sobrevivência, não apenas do projecto, mas da sua dinâmica. As opiniões públicas mais relutantes acabariam por se render ao imperativo da eficácia, temendo ficar para trás na História. Daí a repetição dos referendos negativos – a bondade estaria, sempre e naturalmente, do lado do sim.

Aqueles que iam afirmando que os novos passos integradores – “mais Europa” – só poderiam ser dados quando os europeus se convencessem da utilidade da Europa que já tinham eram, sistematicamente, apodados de reaccionários e atávicos soberanistas. E alguns assustaram-se e deixaram-se ir no sentido dos ventos que a História parecia soprar.

Neste cenário de fuga em frente, começaram, entretanto, a projectar-se duas nuvens.

A primeira foi a crise endémica da economia europeia num quadro acelerado de globalização, com quebras de produtividade, falências e despedimentos, agravados com os processos de deslocalização produtiva. Tudo isto com impactos na sustentabilidade de um modelo social tributário de outros tempos. Aí, aparece como “benchmark” a economia americana, simultaneamente odiada e invejada, que cumpria a função de lebre do desenvolvimento que queríamos atingir, obviamente evitando pagar o preço social da proeza. A chamada “Estratégia de Lisboa” foi a receita de ocasião, um hábil caldeirão de medidas liberais e sociais, construído para agradar a gregos e a ingleses, no caminho complexo da recuperação da competitividade perdida pela Europa no mercado global.

Depois veio o alargamento, aceite como uma inevitabilidade estratégica. Na sua adopção, na forma que teve, conjugaram-se várias agendas, algumas sérias, outras de proximidade, outras de oportunismos de mercado e, outras ainda, de natureza claramente táctica, mesmo anti-integração. De um processo gradativo, que amadurecesse cada passo e garantisse a digestão de cada nova adesão, rapidamente se passou, pela cumulação de lóbis, a um salto gigantesco e simultâneo, sem que os promotores maiores da ideia acedessem a pagar, coerentemente, o preço pelo feito. A Europa deve ser a única entidade onde ainda se acredita que a cumulação de lógicas egoístas e contraditórias acabará por constituir, mais cedo ou mais tarde, uma vontade política comum.

Mas a Europa do novo alargamento não podia ficar como estava. A eficácia era um argumento onde havia alguma verdade e muita táctica. Nice havia sido a tentativa de alguns para evitar que quem se habituou a dirigir a Europa comunitária, e a pagá-la (o que se diz menos), perdesse excessivo poder por virtude da entrada de novos Estados. 

A nova Constituição começou por ser a aliança bizarra dos que não ficaram saciados com a fatia de poder recebida em Nice com quantos pensaram poder aproveitar o ensejo de mais uma revisão dos tratados, para dar um outro salto qualitativo em matéria integradora.

Esta Constituição nasce em dois tempos algo polémicos.

A primeira foi a Convenção Europeia, uns “estados gerais” de composição discutível, que transformaram em consenso a média aritmética do “politicamente correcto” bruxelense, somado à sinonimização de demografia com democracia. Alguns inocentes úteis, com a voz perdida num areópago onde havia, desde o início, uns mais iguais que outros, calaram as suas divergências ou fingiram que as não tinham. Outros, nem sequer isso: fugiram por entre as pingas da negociação e colaram-se, sucessivamente, às diversas propostas sobre a mesa, para se darem ares de utentes automáticos dos saldos do “mainstream”.

A segunda foi uma Conferência Intergovernamental apressada, descuidada e, a meu ver, mal negociada por alguns, por forma a não haver tempo excessivo para reflectir. Em tese, nada obrigava a que o novo texto tivesse de ser concluído na presidência italiana. Na prática, todos se comportaram como se assim tivesse que ser. Para além do procurado dramatismo das negociações até altas horas, a Europa também se faz de mitos que acabam por converter-se em verdades como punhos. E em que todos fingem acreditar.

O resultado aí esta: a Constituição Europeia. Era necessária ? Seguramente não era, em absoluto, indispensável e, diga-se o que se disser, a Europa podia viver, como está a viver, com o Tratado de Nice, mesmo num cenário de alargamento. Convém lembrar – porque alguns procuram fazer esquecer – que, à saída de Nice, todos disseram que esse tratado criava as condições mínimas necessárias para que a entrada de novos países se pudesse fazer sem sobressaltos. Mas se assim não era, por que razão recomendaram aos respectivos parlamentos e opiniões públicas a aprovação de tal tratado ?

Voltando à questão inicial. Uma Constituição Europeia não era indispensável para a Europa funcionar. Mas, independentemente do modo altamente discutível como esta foi gerada, ela não seria, necessariamente, uma má ideia. Como se tornou óbvio durante a Convenção Europeia, esta Constituição é um compromisso baseado em alguns equívocos, provavelmente inevitáveis, no velho conceito da ambiguidade diplomática, que disfarça o presente e adia as dores de cabeça para o futuro.

Os federalistas europeus, cultores de um projecto generoso que assenta na convicção de que a diluição das soberanias europeias é o caminho certo para a criação de um modelo que garanta a paz e a desaparição das tensões intra-nacionais, gerando uma entidade europeia sólida, julgaram ter visto neste exercício o tempo para mais um salto em frente.

O texto consagra, de facto, em vários pontos, o sedimentar das políticas que os anteriores tratados desenvolveram, reforça outras de forma muito interessante e sinaliza áreas periféricas cujo desenvolvimento, em termos comunitários, pode vir a depender da vontade colectiva que em cada tempo se gerar. No tocante às instituições, parece desenhar um papel preponderante das instâncias comuns, o que, sem dúvida, reforça a percepção da deriva federal, também presente na extensão das votações por maioria e no aumento automático de poderes do Parlamento Europeu – uma instituição que os Governos odeiam mas a que prestam regular vassalagem. Se a isto acrescentarmos a importância da inclusão da Carta dos Direitos Fundamentais, um passo decisivo para a consagração da cidadania europeia, teremos construído um interessante passo adiante na construção da Europa federal. Só por isto, gostava de deixar claro, a Constituição – ou o Tratado – valeria a pena.

Mas serão as coisas, de facto, assim ? Por que razão países e governos tão avessos à via federal europeia se mostraram abertos a subscrever a Constituição ? Por inevitabilidade ? Para não ficarem mal na foto ? Por se terem convencido que um referendo alheio acabaria por libertá-los do fardo?

Pode haver algo de verdade em tudo isso, mas há igualmente a vontade de alguns em aproveitar o pretexto da Constituição para ganharem, uma vez mais, poder. Os mecanismos de gestão da União previstos na Constituição colocam na mão de um núcleo muito restrito de países, por via da determinante demográfica, o poder de facto dentro da União. Ao fazê-lo, cumpre-se uma evolução natural para qualquer entidade federal – no sentido da legitimidade democrática. Só que, nessa mesma lógica federal, a prevalência dessa mesma legitimidade teria sempre de cruzar-se com uma outra, essa derivada da legitimidade nacional, através de uma câmara de representação equitativa, de um senado de Estados. Ele não está presente na Constituição e é altamente duvidoso que os Estados que agora asseguraram o seu desmesurado poder, sem ter de se sujeitar a uma instância onde estariam equiparados a todos os outros de menor dimensão, venham a aceitar, no futuro, um qualquer recuo institucional em detrimento da sua força actual.

Ao não existir este factor de equilíbrio, o futuro da União, no plano institucional, fica nas mãos de um condomínio constituído pelos Estados mais populosos, os quais, com duas excepções (Espanha e Polónia, o que justifica muitas das discussões que envolveram, precisamente, a questão do poder relativo destes dois países) são também dos mais ricos e desenvolvidos.

A objectivação, no dia-a-dia, do poder conjugado desses países depende, contudo, da nem sempre fácil harmonização das respectivas agendas. O agente dessa conjugação eventual de vontades é a mais deletéria figura de toda esta nova construção institucional – o presidente do Conselho Europeu. O aparecimento desta figura constitui a prova mais flagrante de que estamos perante um modelo que mais não é senão um modelo tendencialmente intergovernamental, com o centro do poder bem identificado. De facto, o complexo institucional criado na Constituição funciona, na prática, em objectivo detrimento da instituição cujo reforço significaria a evolução para um modelo federal – a Comissão Europeia. A perversidade do novo sistema institucional instituído vai ao ponto de criar uma conflitualidade quase inevitável entre o presidente do Conselho Europeu e o presidente da Comissão, nomeadamente retirando a este muita da representatividade externa que tinha vindo a obter e que funcionava em favor de um reforço do seu papel. Por outro lado, coloca como vice-presidente da Comissão (mas não dando ao respectivo presidente o direito a nomeá-lo) o MNE da União, cuja acção no domínio externo é flagrantemente concorrencial com a do presidente do Conselho Europeu.

A minha leitura, que reconheço algo conspirativa, é de que este sistema complexo e contraditório foi criado para falhar, para provocar uma tensão interinstitucional que os Estados acabariam por resolver com a atribuição futura de mais poderes ao presidente do Conselho Europeu. O que significaria, leia-se, a perda progressiva da autonomia da Comissão, que o mesmo é dizer, do vector federalista central do sistema. E, assim, a vitória da intergovernamentalidade.

Sendo assim, é esta uma Constituição desejável para a Europa ?

Esta Constituição, não obstante conter características que a poderão definir como tributária de uma indesejável lógica no sentido intergovernamental, a que há que estar muito atento, consagraria avanços em matéria de políticas, bem como de codificação de normas, que apontam para que mereça o benefício da dúvida. Traz melhor Europa na definição das políticas, simplifica alguns procedimentos e sedimenta modelos criativos em áreas fundamentais para atacar, ou vir a atacar, os “medos” que hoje atravessam e regem os povos europeus – a insegurança pública, a insegurança internacional, as disfunções entre os modelos sociais nacionais. E codifica as políticas de acompanhamento do euro, um fantástico sucesso de que já ninguém fala.

Mas, mais do que tudo, esta Constituição Europeia, não obstante todas as sua limitações, permitiria à Europa funcionar em velocidade de cruzeiro, garantiria um quadro orgânico estável para o desenvolvimento do actual tecido de políticas, em moldes compatíveis com a absorção dos alargamentos. Bem explicada e não imposta, esta Constituição não seria nunca um retrocesso para o projecto europeu – e essa é a principal medida pela qual devemos medir as suas vantagens. Para Portugal e para a Europa.  
 
 
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1 de janeiro de 2006

Uma Década de Política Externa (1995-2005)

Em Outubro de 1995, o Partido Socialista regressou ao poder, depois de mais de 13 anos na oposição. Do programa de política externa do XIII Governo constavam, sem tal ser afirmado expressamente, algumas ideias pretendidamente novas sobre áreas onde a acção da anterior governação poderia ser considerada mais débil. Para além de reflectir preocupações de conjuntura e linguagem da agenda “progressista” internacional (sistema multilateral e Direitos Humanos, questão Norte-Sul), o programa não assumia, contudo, nenhuma ruptura drástica de orientação. No essencial, o modelo anunciado de prioridades assentava na tradicional tríade regional, que sempre fora percorrida pelos anteriores governos do PS e do PSD: Europa, África e relação transatlântica.

Quatro anos mais tarde, em 1999, o programa do governo socialista reconduzido (XIV Governo) reflectia algumas das novas realidades com que o país entretanto se confrontara, em especial na agenda europeia. Mas as três prioridades anteriores mantinham-se centrais. Porém, e em perspectiva, pode dizer-se que, com a questão de Timor-Leste (ver caixa), a Europa viria a revelar-se o tema dominante nos quase seis anos da gestão socialista na área externa e sê-lo-ia, também, no subsequente governo PSD/CDS-PP.

A Europa

No terreno da União Europeia (UE), Portugal confrontou-se sucessivamente, a partir de 1995, com a negociação do Tratado de Amesterdão (1996-97) e do pacote financeiro da “Agenda 2000” (1997-99), a obtenção do acesso à 3ª fase da União Económica e Monetária (1999), a presidência portuguesa da UE (2000) e a negociação do Tratado de Nice (2000). Pelo meio ficou o arranque e a presidência do Acordo de Schengen (1997), o novo processo de alargamento comunitário e um esforço de activa participação na nova política mediterrânica da UE (neste caso, ligado a uma maior visibilidade portuguesa em outras dinâmicas na região[1]).

Para Portugal, a Europa não se esgotou, contudo, na agenda da UE. O país viria a tomar a estratégica decisão de estar presente com forças militares no cenário de pacificação da Bósnia-Herzegovina, abrindo um capítulo novo na afirmação externa do país no cenário continental. A realização da Cimeira da OSCE em Lisboa (1996) e o trabalho que culminou na presidência portuguesa da organização (2002) acabaram por dar a Portugal uma inédita visibilidade em áreas geográficas tradicionalmente não frequentadas pela nossa política externa.

Antes disso, entre 1986 e 1995, a acção externa europeia, para além da defesa dos interesses comerciais no âmbito do “Uruguay Round” do GATT, havia-se concentrado nas adaptações legislativas decorrentes da integração e, com destaque, na negociação de dois importantes quadros comunitários de apoio financeiro. Nesse tempo, a discussão do Tratado de Maastricht foi um exercício onde o nosso país teve uma presença algo discreta. Já a presidência de 1992, bem conduzida “by the book”, revelou-se uma prestação segura e prestigiante para a imagem do país.

A Europa pós-1995, além de iniciar a catadupa de revisão dos Tratados que culminaria na crise da Constituição Europeia, veio a ter como decisivo pano de fundo os processos de alargamento (e a discussão sobre a sua dimensão e ritmo) e a crescente indisponibilidade demonstrada pelos contribuintes líquidos da UE para manterem as anteriores políticas de financiamento. A Europa tinha mudado, as necessidades de Portugal um tanto menos e Lisboa viu-se obrigada a uma luta muito difícil para conseguir sugerir-se ainda como prioridade num contexto europeu muito mais exigente.

A diplomacia externa portuguesa procurou, assim, continuar a garantir as ajudas comunitárias (argumentando com a “especificidade” do caso nacional), operando simultaneamente um processo de recentragem na manifestação da vontade europeísta – com alguma tibieza inicial no plano institucional, ousadia na resposta política positiva ao alargamento e afirmação de uma vocação inclusiva nos processos de aprofundamento sectorial de políticas (Schengen, UEM).

Na negociação institucional europeia seguinte, sob gestão PSD/CDS-PP, Portugal viria a ter uma prestação interessante durante a Convenção sobre o Futuro da Europa, a que se seguiu uma discreta e muito táctica postura no percurso subsequente, que levou à fixação do texto da Constuição Europeia.

A Presidência da União Europeia

Portugal optou por transportar para a sua presidência da UE (2000) uma muito ambiciosa agenda de relações externas. Ela decorria do interesse em ligar o nome do país à cada vez mais diversa actividade internacional da UE[2], cuidando em promover alguma colagem a linhas de acção bilateral que o país lançara nos últimos anos, com vista a ampliar a sua dinâmica diplomática. A realização da Cimeira UE-África, conseguida após laborioso trabalho diplomático junto dos Estados africanos, terá ficado então como um dos mais importantes marcos desta vontade portuguesa.

Afectada inicialmente pelo inesperado “caso austríaco”[3], a presidência europeia de 2000 viria a ter como ponto alto o estabelecimento da chamada “Estratégia de Lisboa” – um conjunto calendarizado de objectivos tendente a reforçar a competitividade da economia europeia, através de um imaginativo modelo de coordenação de diversas políticas nacionais, o qual ainda hoje continua a inspirar as agendas comunitárias. Não parece exagerado contar-se a Presidência de 2000 como um dos êxitos mais significativos da política externa portuguesa na década passada.

Multilateralismo

Ainda em 1995, o XIII Governo decidiu confirmar a anterior candidatura portuguesa ao Conselho de Segurança da ONU (biénio 2007-08)[4]. O sucesso deste empreendimento viria a cumular-se ao exercício da Presidência da Assembleia-Geral, assumido no ano anterior[5]. A presença portuguesa no CSNU coincidiu com um período muito importante na discussão da questão timorense.

A partir daqui, Portugal iniciou nas Nações Unidas um período de visibilidade, que foi de par com uma sua intervenção muito activa noutros fóruns multilaterais. Em vários desses contextos, o país passou a ser visto como um firme defensor do papel central do sistema multilateral no âmbito regulatório internacional e diversos aspectos dessa sua múltipla intervenção garantiram-lhe uma imagem de coerência e de desejável “previsibilidade” de reacção.

A Espanha

O quadro integrador europeu demonstrou ser um terreno interessante para projectar o relacionamento entre Lisboa e Madrid, num novo tempo de abertura de fronteiras físicas e económicas. A partir de 1995, alguns contenciosos tradicionais puderam dar um salto em frente (regulação dos caudais dos rios comuns), outros tiveram, nesse contexto, um marco regulatório para incidentes de percurso (regimes de pescas fronteiriças) e um espaço para a discussão serena de novas realidades conflituais bilaterais surgiu no horizonte (polémicas sobre concentrações empresariais).

A relação Portugal-Espanha, que desde a comum entrada para a UE como que perdeu a tensão que parecia afectar tradicionalmente o diálogo ibérico, passou neste período por uma prova interessante, com a discussão, e posterior estabelecimento de novos equilíbrios, da questão dos comandos regionais das forças na NATO. Haverá que reconhecer-se que o saldo deste delicado exercício negocial terá constituído um evidente sucesso para a diplomacia portuguesa.

A relação ibérica navega hoje em águas de plena normalidade, praticamente imune às flutuações políticas em ambos os países.

O Brasil

Uma relativa surpresa no contexto bilateral constitui-se em torno da relação luso-brasileira. Desde há décadas que, naquela relação, a dimensão económica perdera quase toda a relevância, com a retórica emotiva a assumir-se como o “produto” privilegiado de tráfico bilateral... O facto do surto de privatizações e a estabilidade política no Brasil ter coincidido com uma fase de expansão internacional de grupos económicos portugueses (que os mercados africanos habituais então não facilitavam), justificou o empenhamento político de Lisboa na promoção de um inédito movimento de investimento empresarial luso no Brasil.

Foi um gesto eminentemente político, a que estavam subjacentes juízos de racionalidade económica, que a realidade viria a confirmar. Com muito mais avanços que recuos, este movimento consolidou-se e o Brasil permanece ainda hoje como um dos principais destinos dos capitais portugueses, com um impacto mais limitado nas trocas comerciais bilaterais.

Menos conseguido terá sido o esforço paralelo com vista a fazer de Portugal (e de Espanha) factores impulsionadores para um reforço da integração sul-americana, em torno de um Mercosul que continua a dar mostras de grande debilidade e cuja relação com a UE tem vindo a atravessar inesperadas dificuldades.

A marcar também esta nova fase da relação luso-brasileira, neste caso invertendo o modelo migratório tradicional, estão os mais recentes fluxos de cidadãos brasileiros para Portugal, criando uma diferente realidade, com implicações de natureza política[6].

A África

Antes de 1995, a governação social-democrata havia dado alguma ênfase a determinados dossiês da relação de Portugal com as suas antigas colónias, onde avultou a tentativa de mediação nos processos de paz nas ex-colónias. Há que reconhecer que a conjuntura não foi propícia a grandes avanços nesse domínio nos anos posteriores de governação socialista. Os esforços tendentes ao arranque da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), a interessante presença portuguesa numa das crise cíclicas da Guiné-Bissau e outras iniciativas esporádicas não foram suficientes para alterar significativamente este panorama. A experiência prova que a “navegação à vista”, olhando os ciclos políticos dos interlocutores africanos, continua a ser a regra predominante no relacionamento com o nosso legado pós-colonial.

Num plano africano mais alargado, a realização da Cimeira UE-África, durante a presidência europeia de 2000 e uma inédita evidência portuguesa na política mediterrânica trouxeram, contudo, outra África para a nossa política externa. Raramente a vertente africana fora do espaço dos PALOP foi tão bem trabalhada (também no contexto ACP, através de Bruxelas[7]) como no tempo que antecedeu e sucedeu à Presidência da UE em 2002.

O Atlântico

Historicamente, a política externa portuguesa, em democracia, procura manter uma relação muito positiva com Washington. PS e PSD habituaram-se a comungar uma leitura segundo a qual uma atenção particular face aos EUA, ligada também a uma relação privilegiada com quem na Europa melhor se articula com os americanos, aparece como condição indispensável para preservar alguns equilíbrios estratégicos no plano europeu, em especial no contexto da Aliança Atlântica. O modo como a questão da presença americana nas Lages foi sempre dialogada, no quadro da negociação das respectivas contrapartidas, não deixou sempre de reflectir o interesse permanente em não alienar a boa-vontade de Washington.

Na década em observação, dois tempos distintos podem ser observados.

Com algum êxito, os executivos socialistas utilizaram esta relação para promover os interesses portugueses na delicada questão da distribuição dos comandos na NATO, em particular para contrabalançar outras ambições no âmbito peninsular.

Mas seria na decisiva questão de Timor-Leste (ver caixa) que esta articulação com os EUA melhor foi activada, com reflexos claros na evolução do problema.

Face à vontade americana de ir além do Afeganistão e do reforço de uma acção anti-terrorista global (acções que sempre haviam podido contar com a cooperação e boa-vontade do poder socialista cessante), na sua reacção pós-11 de Setembro, o entretanto empossado XV Governo constitucional português (aliança entre PSD e CSD-PP) enveredou por uma leitura radical do alinhamento do país com Washington. Sem deixar de afirmar o seu respeito formal pela preeminência do quadro multilateral, Portugal colocou-se abertamente ao lado de Washington quando, em 2003, os EUA decidiram a acção unilateral no Iraque e ganhou uma inédita visibilidade nesta sua singular posição com o acolhimento da polémica Cimeira das Lages. Ao assumir esta atitude, de cariz que pareceu marcado por uma opção de natureza ideológica, mas que se sugeriu apoiado numa pretensa leitura estratégica dos equilíbrios ibéricos, Portugal afastou-se radicalmente da política de alianças que vinha constituíndo na UE desde a sua adesão. No plano interno, introduziu também uma decisiva clivagem no tradicional consenso em matérias centrais de política externa, com consequências muito visíveis na atitude das oposições e do próprio Presidente da República, neste caso como iria ficar evidente quando se colocou a questão de eventual envio de tropas para o cenário de guerra.

Este posicionamento episódico, mas determinante, do país face à nova expressão do poder americano no quadro global acabaria por constitui-se como um dos mais marcantes momentos da política externa portuguesa na década em apreço.

Esta foi também a marca mais evidente deixada na memória da acção externa dos dois governos PSD/CDS-PP (XV e XVI Governos).

Síntese

Em perspectiva, pode dizer-se que se salientam, na década de 1995-2005, na política externa portuguesa:

- a crescente preeminência e a proeminência da União Europeia, como eixo referencial, condicionante e determinante da diplomacia portuguesa;

- a capacidade político-diplomática para levar a bom porto o longo esforço internacional para garantir o direito à autodeterminação do povo de Timor-Leste;

- a crescente utilização das Forças Armadas em contextos de prevenção ou pós-conflicto, num esforço de afirmação de presença que muito tem prestigiado o país;

- o alinhamento conjuntural com uma agenda americana radical, por virtude da crise iraquiana pós-11 de Setembro, afectando pontualmente a credibilidade do país no contexto multilateral e a estabilidade da sua política de articulação com os parceiros europeus.



[1] Fórum do Mediterrâneo, dinamização do processo ”Cinco mais Cinco”, para além da instituição de uma cimeira bilateral anual com Marrocos.

[2] Javier Solana assume o lugar de Alto-Representante para a Política Externa e de Segurança Comum no início da presidência portuguesa da UE.

[3] A chegada ao governo da Áustria de uma coligação que incluía um partido de extrema-direita suscitou uma reacção por parte dos seus parceiros comunitários, traduzida num congelamento temporário de algumas dimensões do relacionamento bilateral. Portugal cuidou, contudo, em que todos os direitos da Áustria como membro da UE não fossem afectados.

[4] A campanha de promoção da candidatura portuguesa fora praticamente suspensa no primeiro semestre de 1995, obrigando a um grande esforço diplomático ao longo de todo o ano de 1996, que viria a ter pleno sucesso.

[5] Através do Professor Diogo Freitas do Amaral, Portugal presidiu à Assembleia Geral da ONU em 2004/05.

[6] Em 2003, um entendimento luso-brasileiro permitiu abrir caminho à legalização de cerca de 30 mil cidadãos brasileiros ilegalmente residentes em Portugal.

[7] A Convenção de Cotunu, entre os países ACP (África, Caraíbas e Pacífico) e a União Europeia foi assinada em 2000, sob presidência portuguesa da UE.

Um Amigo no Palácio de Vidro

No dia em que a Coreia do Norte faz um ensaio nuclear, condenado por toda a Comunidade Internacional, uma personalidade originária do país homónimo, mas a sul do Paralelo 38, é indigitado Secretário-Geral (SG) da ONU.

Só o futuro nos poderá dizer se esta coincidência, que precisamente se projecta no último reduto vivo da Guerra Fria, é meramente conjuntural ou se terá algum significado mais concreto. Mas o facto dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (entre os quais a China e a Rússia, com interesses estratégicos imediatos na região) se terem associado num voto unânime de confiança a uma personalidade sul-coreana pode querer dizer alguma coisa.

O novo SG da ONU, Ban Ki-Moon, é um homem de uma grande sabedoria e, curiosamente, tem, do conflito que envolve o seu país com o vizinho do norte, uma visão muito realista, pragmática e construtiva. Conheço-o pessoalmente desde há cerca de cinco anos, quando chefiava o gabinete do Presidente da Assembleia Geral da ONU, ao tempo em que eu presidia a uma das seis comissões dessa Assembleia. Ela foi marcada pela ocorrência do 11 de Setembro e pela necessidade, daí decorrente, de se adequarem diverosos aspectos da agenda substantiva da AG. Tivémos, à época, longas reuniões de trabalho, em muitas das quais ele representava o Presidente da AG, várias realizadas pela noite dentro na residência do embaixador português. Desses contactos, que criou entre nós uma corrente de simpatia e respeito, recolhi a imagem de uma figura serena, ponderada e de inexcedível simpatia humana. O sucesso da presidência sul-coreana desse ano fica imenso a dever-se-lhe.

Dois anos mais tarde, quando estive em Seul a convite da OSCE – para representar a organização num debate internacional sobre CSBM’s (medidas geradoras de segurança e confiança), com que se procurava ajudar a pavimentar o diálogo com a Coreia do Norte e apoiar as “coversas a seis” que o estimulavam – Ban Ki-Moon teve a amabilidade de me procurar e convidar para um almoço a dois. Falou-me então, com grande abertura, das posições e ambiçóes do seu país (era então assessor diplomático do respectivo Presidente) no relacionamento com Piongyang e, muito em especial, explicou-me o delicado quadro de condicionantes em que a diplomacia do sul se movia, face aos seus vizinhos, aliados e outros poderes interessados. Apreciei o gesto amigo e, ainda mais, a franqueza pouco usual com que me quis dar conta de pormenores pouco conhecidos dessa complexa problemática, que, ontem como hoje, continua central em toda a acção política do seu país.

O conhecimento pessoal que tenho de Ban Ki-Moon leva-me a ter uma elevada expectativa sobre a qualidade da sua gestão futura da ONU. Em especial, estou seguro que ele prosseguirá muito do que Kofi Annan tentou realizar em matéria de uma agenda de modernidade para a organização. Embora os Secretários-Gerais sejam, por dever de ofício, independentes dos países de onde são originários, a sensibilidade subjacente às respectivas culturas diplomáticas não deixa de marcar a sua acção. Por essa razão, estou convicto que a preservação do multilateralismo, como eixo da ordem internacional, não deixará de estar no centro da sua agenda de trabalho.