30 de outubro de 2010

O Novo Capital

Gostava de dizer que fiquei muito satisfeito por este convite que me foi dirigido pelo Dr. Francisco Jaime Quesado para fazer, hoje e aqui, a apresentação do seu livro “O novo capital”.

Mal eu sabia – mal nós sabíamos – que esta apresentação teria lugar numa das semanas que talvez justifique, ainda mais, a atenção a conceder a este livro.

Eu explico. Francisco Jaime Quesado apresenta-nos um conjunto de textos onde se matura, com apoio de factos, de autores e de pistas documentais, uma reflexão prospetiva para o nosso país. Se eu tivesse de definir este livro numa frase, eu diria que ele é um manifesto para uma nova cultura estratégica para Portugal, assente no conhecimento e na inovação.

A semana que agora termina, na onda de inquietação que só agora começou e que a todos nós provocou, veio revelar que o problema português reside, precisamente, no nosso défice estrutural de competitividade, que limita a nossa capacidade de sucesso no mercado global, fruto de diversas disfunções, de muitos erros, de alguma cegueira. Mas, por detrás de tudo isto – ou melhor, provavelmente a motivar tudo isto – está a debilidade da nossa força relacional interna, está a não otimização dos nossos recursos, estão as chocantes deficiências da nossa qualificação, está o não aproveitamento tempestivo das oportunidades que os nossos atores, públicos e privados tiveram ao seu dispor e que, pelos vistos, não souberam agarrar em pleno. É claro que estou a falar dos quadros comunitários de apoio.

Este livro é um livro provocatório.

Em primeiro lugar pelo próprio título, que revisita ironicamente, com menção expressa, o do maior clássico do marxismo.

Em segundo lugar porque é um livro otimista. E ser otimista, nos dias de hoje, leva a que possamos ser acusados de parecer aquele ministro da Informação de Saddam Hussein, que iludia, com discursos fantásticos, a catástrofe iminente. Eu, que sou otimista, até por deformação profissional, senti-me bem ao ler este livro.

Mas o livro é também muito realista, em especial sobre os nossos defeitos comportamentais – os tais que nos conduziram à situação em que estamos. É que sem a superação desses mesmos defeitos, dificilmente sairemos dessa mesma situação. Quando chegarem às vossas casas, leiam, com abertura de espírito, a página 67 do livro, onde o autor nos desenha como, de facto, somos, em toda a nossa vulnerabilidade comportamental. A tendência natural, ao lermos esse drástico (embora elegante) elencar de defeitos quase identitários, será olhar para o lado, descobrir os outros como titulares dessas distorções que nos marcam como país. Mas – deixemo-nos de ilusões! – somos nós mesmos que estamos nesse retrato, a alto contraste.

Este livro tem em particular atenção aquele que foi um ponto de partida para uma nova abordagem do papel da Sociedade do Conhecimento, do impulso que isso poderia trazer para a competitividade da economia europeia – para o crescimento e para o emprego. Estou a referir-me à Estratégia de Lisboa, lançada em 2000, que pretendia ser a base orientadora de um conjunto de políticas integradas, suscetíveis de darem um novo impulso ao tecido económico-social europeu, que então estava em curso de redefinição como projeto. Estávamos então no tempo da conclusão do mercado interno, da entrada em vigor da moeda única e das primeiras grandes consequências palpáveis da globalização – na sua dupla dimensão de riscos e tensões, pelos contrastes dos modelos produtivos, e pelas grandes oportunidades que abria em termos de novos mercados e desafios de produtividade.

O percurso seguido pela Estratégia de Lisboa mostrou duas coisas:

- que o voluntarismo político europeu não é condição suficiente para o sucesso de projetos que envolvam entidades nacionais que mantenham entre si diversidades muito fortes,

e, em especial,

- há uma contradição, por ora insanável, entre a fixação de um espaço político-económico comum e a preservação de dinâmicas económico-sociais e ideários polarizados por experiências historicamente diferentes.

Isso não significa que a Estratégia de Lisboa – a Agenda de Lisboa - não tenha identificado pontos-chave que continuam a poder permitir o futuro sucesso competitivo, à escala global, das economias europeias. Em especial, a Estratégia serviu para sublinhar, de forma muito evidente, que a aposta nos elementos valorizadores da sociedade do conhecimento e da inovação continua a ser um eixo incontornável para qualquer solução para o nosso futuro.

Só que o mundo mudou e demo-nos conta que, numa década, alteraram-se de forma radical algumas das variáveis com base nas quais havia sido feito o desenho do modelo da Estratégia de Lisboa. O aprofundar de algumas assimetrias, nomeadamente as decorrentes da desigualdade de efeitos do processo de globalização, acabou por redundar num menor empenho, por parte de alguns Estados centrais no processo económico europeu, nos compromissos pelos mesmos assumidos em 2010. Por essa razão, aquando das revisões durante o percurso, as pressões sobre a Estratégia acabaram, de certo modo, por descaracterizá-la e, em especial, por criar dúvidas em relação ao seu caráter orientador.

A Estratégia não tinha um caráter imperativo e muitos acusam-na disso mesmo. Ora ela não foi imperativa porque os Estados não quiseram que ela o fosse e, por isso, recorreu-se ao chamado “método aberto de coordenação”, que comparava as práticas e definia alguns “benchmarkings”.

A recente aprovação chamado projeto Europa 2020 foi a consequência desse novo repensar coletivo em torno da Estratégia de Lisboa. Veremos se esta iniciativa da Comissão europeia tem mais sucesso.

Um outro ponto importante abordado neste livro – e que se prende com aquilo que o Dr. Francisco Jaime Quesado nos vai falar a seguir – tem a ver com as questões do espaço a nível nacional, isto é, da imperatividade da agregação dos atores significativos, que estejam envolvidos no nosso processo de desenvolvimento, ter em conta os novos paradigmas que decorrem da implantação da Sociedade do Conhecimento. O reordenamento espacial desses atores – Estado, empresas, universidades e outros centros de investigação e desenvolvimento – configura uma mudança cultural difícil de assumir, mas que é essencial para o êxito do projeto coletivo.

De todo este livro, como aliás de outros artigos que já tinha lido, publicados pelo autor, decorrem algumas ideias que, podendo parecer radicais, acabam por ser apenas interessantes metas para aquilo que poderíamos designar um novo e ambicioso bom-senso. Esse bom-senso radica, no essencial, na continuidade da aposta na Educação, vista, porém, numa perspetiva menos individualizada e mais num modelo de permanente qualificação, orientada para uma estratégia de desenvolvimento coletivo. A indução de “valor” e de criatividade, num modelo em rede onde o saldo seja bem maior que a soma das partes, é visto como essencial à geração de uma “massa crítica” nacional de novo tipo, um novo “capital estratégico”.

Um dos aspetos que, a meu ver, tornam relativamente original a abordagem promovida neste livro – e que a mim, pessoalmente, me diz muito – é a permanente preocupação com a preservação das dimensões sociais. Muitas análises que tenho lido sobre estas temáticas colocam os modelos sociais como sub-produtos das ondas de modernização tecnológica, dando como adquirido, que haverá necessariamente um efeito positivo de arrastamento que acabará por redundar num saldo social aceitável, esquecendo os perdedores inevitáveis, desprezados ao longo do percurso. Ora o autor, curiosamente, sublinha no seu trabalho, em todos os momentos, a necessidade de enveredar por processos de inclusão e por práticas de integração dos desfavorecidos, dos imigrantes, de todos aqueles que têm défices operativos de participação. Isto é muito interessante e, devo dizê-lo, não é muito vulgar.

Nesta preocupação social há, contudo, um grande realismo. O autor é de opinião que “a dimensão social do paradigma europeu está esgotada”. Eu não seria tão drástico, mas também concordo – e alguns dados recentes vão nesse sentido – com o facto de ser necessário garantir que essa dimensão social assente “na sustentabilidade do mercado económico e não apenas em dinâmicas artificiais de política publica, meramente conjunturais”, na “capacidade dos atores sociais criarem aquilo que recebem, para que o sistema funcione de forma sustentada”.

Como regra, acho esta ideia de meridiana sensatez, embora me interrogue se não compete ao Estado, em especial em sociedades com o nosso nível de desenvolvimento, e sob pena de deixar cair a sociedade em modelos de maltusianismo social, (se não cabe ao Estado) obviar às disfunções que afetam as camadas mais vulneráveis. As pessoas vivem hoje porque, a longo prazo, como dizia Keynes estamos todos mortos.

Temos vindo a ter uns dias marcados pelo discurso em torno da nossas responsabilidades perante as gerações futuras. Mas é importante não esquecer que a nossa principal responsabilidade continua a ser perante as gerações presentes, perante o cidadão que, daí a momentos, vamos encontrar ao virar da esquina. O dever de não comprometer o futuro não nos deve fazer esquecer as responsabilidades de hoje. É no equilíbrio destas duas responsabilidades está o segredo da relação intergeracional.

Outro aspeto interessante que resulta das propostas feitas tem a ver, na linha do que atrás referi como a preocupação do tratamento espacial do conhecimento, com a valorização das cidades médias, voltadas para a qualidade, a criatividade e a sustentabilidade ecológica. Aquilo que o autor designa como “Programa Territorial para a Modernidade” é uma pista interessante a explorar, tanto mais que funciona em contraciclo com os atuais processos de desertificação que marcam o nosso país.

A estes dois eixos – papel de uma sociedade civil inclusiva e um novo paradigma territorial – o autor junta, quase como programa operacional para uma nova estratégia nacional, três outras vertentes: a aposta tecnológica, a aposta na dimensão cultural, em especial explorando as potencialidades do espaço da língua, da cultura mas também do “imaginário” histórico nacional que sobrevive pelo mundo e, finalmente, um compromisso de participação cívica, uma espécie de “cimento” de cidadania, sem o qual as sociedades não se congregam e geram sinergias.

Diversos outros aspetos poderiam ser citados, mas uma nota sobre um livro não substitui a sua leitura. E é essa leitura que recomendo.

Termino felicitando o Dr. Francisco Jaime Quesado por este seu esforço em refletir sobre o país que temos, sobre o que fazer para o mudar, preservando a sua identidade, num registo de modernidade, de maior dinamismo e de progresso. Este livro pode ajudar a dar ânimo a muitos que olham com inquietação para o presente, que abdicaram da esperança e que acabaram por concluir que, no passado, o futuro era bem melhor. 

Apresentação do livro “O Novo Capital”, de Francisco Jaime Quesado
Biblioteca Municipal de Vila Real, 30 de Outubro de 2010

26 de outubro de 2010

A Língua e as comunidades portuguesas

Antes do mais, quero agradecer este convite da União Latina e felicitar a organização desta iniciativa. Ao saudar o presidente desta sessão, queria saudar também todos os presente e, se me permitem uma palavra especial, dirijo-a à senhora doutora Dra. Maria Barroso.

Esta temática do papel da língua portuguesa no quadro global interessa-me bastante, porque faz parte do quadro de afirmação diplomática do nosso país, em que me empenho.

Penso que há um grande e nunca acabado caminho a fazer em torno deste tema e considero que este colóquio é um momento importante para tal. Como sou a única pessoa sem uma atividade de natureza académica nesta mesa, posso dar-me ao luxo de algum impressionismo, ditado apenas por aquilo que fui colhendo, em função da minha experiência pessoal. Achei irónico que o professor Eduardo Lourenço tivesse dito que ele próprio não era um especialista nesta temática. Ora o professor Eduardo Lourenço é talvez o maior especialista vivo na abordagem da questão da nossa identidade como país e ajuda-nos, todos os dias, a olhar para nós próprios de uma forma mais profunda.

A experiência que tenho como funcionário diplomático, com mais de 35 anos ação profissional, foi particularmente reforçada pelos meus dois últimos postos: o Brasil, onde estive cerca de quatro anos e a França, onde agora estou colocado, há menos de dois anos. 

São dois dos países do mundo onde existem grandes comunidades portuguesas, embora com uma génese e uma tipologia muito diversas, nomeadamente em matéria de integração, o que me proporcionou objetos de trabalho e estudo também diferentes, se bem que muito complementares e ambos bastante enriquecedores.

No nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros, as questões ligadas às comunidades portuguesas fazem parte – e perdoem-me a brutalidade, mas já tenho a idade profissional para poder dizer isto – de uma espécie de subsistema diplomático muito específico, às vezes pouco valorizado.

Nesse subsistema há um elemento que não depende de uma visão criada autonomamente no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas que sobredetermina todo o seu funcionamento. Trata-se de uma espécie de “chantagem política” que se gerou, nas últimas décadas, e que acaba por tornar esse setor refém de uma certa ideologia comportamental da natureza funcional e até política.

Na democracia portuguesa, com a chegada do 25 de Abril, estabeleceu-se um generalizado e legítimo sentimento de culpa relativamente ao modo como o Estado olhava as comunidades expatriadas, que o anterior regime obrigara a emigrar e face às quais só se preocupava com as respetivas transferências financeiras. Essa “tragédia” que foi a nossa emigração – como o professor Eduardo Lourenço bem a qualificou – foi um processo que foi imposto a uma geração, que não emigrou por vontade própria. É-se emigrante porque o país no qual fomos criados não nos deu as condições para aí vivermos a nossa vida. Um país que obriga a emigrar é um país que, perante os outros, não se prestigia, porque é visto como incapaz de tratar dos seus. É importante ter isto sempre presente quando se aborda a questão da imagem de Portugal no mundo.

Os emigrantes portugueses são a expressão humana de uma grande aventura, mas de uma aventura trágica. É fundamental que nos lembremos disso na análise que fazemos a este conjunto vasto que é Portugal e o Portugal que vive no exterior.

A “chantagem” a que eu me referia tem a ver com o facto de, perante este complexo de culpa legitimamente criado face aos nossos emigrantes, eles terem sido colocados no seio de uma espécie de “apropriação” político-partidária, ligada à nossa luta política interna. A partir do momento em que os emigrantes votam, põe-se a questão sobre quem os representa melhor, quais as formas de repercutir internamente os interesses que as comunidades migrantes residentes no exterior projetam como sendo os seus, no seu compreensível desejo de maximizar a sua influência. Os partidos competem entre si, às vezes de forma demagógica, pelo potenciar desses direitos dos emigrantes. Tudo começou com a discussão constitucional sobre a representação dos emigrantes na Assembleia da República, depois foi a vez do voto para as eleições presidenciais, para além de outros processos subsequentes de representação institucional – alguns dos quais ainda em curso de discussão. E isso, com naturalidade, projetou-se também em certas políticas públicas que dizem respeito às comunidades. 

Para o que nos importa neste colóquio, eu gostaria de lembrar o problema, que diariamente se coloca, sobre o tipo de ensino da língua portuguesa a ministrar às crianças das comunidades no estrangeiro. Não vale a pena esconder que existe aqui uma verdadeira questão a resolver, que não deixa de estar ligada ao modo como lemos as virtualidades da integração dessas comunidades nos países onde estão instaladas.

No olhar político sobre este tema, prevalece uma forte timidez em querer abrir o debate. Não vale a pena esconder que prevalece hoje, nas comunidades portuguesas, uma perspetiva dominantemente conservadora e estática quanto ao modo como o ensino do português deve ser ministrado. Eu não sei – porque não sou um especialista – se essa perspetiva tem razão de ser. O que sinto é que o mundo oficial português – na administração como na política – parece temeroso de abrir uma discussão, por exemplo, sobre se se deve privilegiar o português como língua materna ou se se deve avançar para a consideração preferencial do português como língua estrangeira. Esta é a razão pela qual entendo que uma questão, que é essencial para a definição definitiva de uma linha estratégica para a afirmação da língua portuguesa no mundo, está atualmente refém do receio de estimular um debate, que se sabe que pode ser politicamente polarizado no seio das comunidades. Com toda a franqueza, quero dizer que acho que não tem havido coragem, em qualquer dos lados do espectro político, para forçar este debate, com frontalidade, com argumentação técnica, séria e elaborada.

Só através desse confronto aberto de perspetivas serás possível ter uma ideia mais clara sobre se o esforço que estamos a fazer para o ensino do português em países estrangeiros, particularmente no ensino primário, tem algum sentido de utilidade e de sustentação, se os meios que estamos a utilizar e a forma como os utilizamos são aqueles que melhor ajudam ao futuro e à progressão da língua portuguesa nesses países.

Desde que cheguei a França pressenti, de imediato, que esta é uma discussão muito complexa, porque atravessa perspetivas e interesses dentro do movimento associativo e da comunicação social das comunidades. É uma questão que senti que não é cómoda para ser abordada pelos diplomatas portugueses, como aliás o não foi quando a senhora presidente do Instituto Camões suscitou o tema, no início do seu mandato: caiu logo “o Carmo e a Trindade”! Ora esta é uma das questões que, a meu ver, tem uma caráter essencial para a nossa estratégia da língua. 

Temos de perceber, de uma vez por todas, o que queremos fazer com o ensino da língua portuguesa, com a importante contribuição dada pelo Estado português para o ensino da língua portuguesa no estrangeiro, em especial ao nível do ensino primário. Porque isto, convém que se saiba, tem depois consequências nos níveis superiores de ensino. Em França, há hoje cerca de 130 professores de português, através de todo o país, coordenados por um serviço em Paris, dependente da Embaixada. Confesso que sinto essa rede de ensino um pouco “solta”, com modelos de avaliação de desempenho que me suscitam algumas dúvidas, as mesmas dúvidas que alimento quanto à capacidade de controlo pedagógico, nomeadamente em matéria de formação e atualização, de muitos desses professores, que atuam em lugares distantes, com escasso contacto personalizado com o serviço coordenador. 

Esse trabalho de coordenação, que era feito pelo Ministério da Educação e que agora compete ao Instituto Camões, merece, a meu ver, ser profundamente revisitado e avaliado – e eu presumo no que me estou a meter, ao falar de avaliação de professores...

Exemplos muito interessantes a nível do ensino do português em França são as “secções internacionais” existentes em alguns liceus franceses. Infelizmente são poucas e o universo de alunos é limitado, o que condiciona, por extensão, a progressão suficiente de alunos de português para o nível seguinte, o nível universitário.

No âmbito das universidades francesas, eu diria que o panorama não é muito brilhante, para além de alguns casos pontuais de sucesso. Temos hoje situações muito variadas, às vezes dependentes da capacidade e prestígio das pessoas que estão a titular os estudos, outras vezes relevando da abertura concedida pelas próprias universidades. Seria muito importante se fosse possível mobilizar os eleitos locais de origem portuguesa, em ligação aos pais, ao movimento associativo e aos “lóbis” que eles conseguissem gerar localmente, forçando o apoio dos “maires”, dos deputados e dos senadores. Mas, para isso, era importante que a comunidade portuguesa funcionasse de forma conjugada, que os portugueses e luso-descendentes se inscrevessem nos cadernos eleitorais, por forma a poderem ter um peso político que conseguisse forçar a abertura de maior espaço para a língua portuguesa, junto de instituições que hoje têm muita autonomia local e regional, pelo que não são suscetíveis de pressão política governo-a-governo. Até no plano “semântico” seria necessário fazer mudanças, por forma a autonomizar os estudos portugueses e do português das dimensões organizacionais marcadas, por exemplo, pela matriz hispânica. Reconheço que é um processo muito complicado, pelo que não consigo estar muito otimista relativamente ao futuro daquilo que é o ensino do português nas universidades de França.

No entanto, e a outro nível mais comercial, tenho visto uma interessante progressão do interesse pelo ensino do português para adultos franceses, nomeadamente no quadro do Instituto Camões, em Paris. Isso tem menos a ver com Portugal e mais com os interesses de formação linguística com vista aos laços com o Brasil e até com Angola. Este é igualmente um dos caminhos para a afirmação da língua portuguesa no exterior.

Uma das ideias que criei quando estive no Brasil e que se reforçou em mim agora em França é de que temos, cada vez mais, de tratar a questão da língua portuguesa como a questão das expressões linguísticas em português. E, em particular, temos de saber tratar em conjunto a questão das literaturas que se expressam em português. É preciso colocar a trabalhar em conjunto das Embaixadas da CPLP, temos de assumir que essa é uma tarefa colectiva, que só a sinergia do trabalho articulado dos países que se expressam em português conseguirá dar expressão à língua à escala global. Só dessa forma conjugada será possível garantir que a língua portuguesa virá a ocupar um espaço de natureza cultural, que lhe garanta um suporte institucional sustentado, nomeadamente a nível das universidades e dos centros de estudos.

Sem esse trabalho oficial conjugado, tudo se perde. Vale a pena dizer que, em França, vemos um esforço  magnifico que é desenvolvido por algumas editoras, no apoio e na promoção das literaturas de expressão portuguesa, muitas vezes com o apoio do Instituto Camões ou da Fundação Calouste Gulbenkian. Esta Fundação, numa excelente cooperação e articulação conosco, que quero aqui sublinhar, tem feito um notável trabalho em prol da cultura portuguesa e de língua portuguesa, que a todos nos prestigia. Quero dizer isto de forma clara porque sendo nós um país que parece que faz gala em dividir-se e conflituar, ao menos que, quando, por uma vez, as coisas correm bem, deve congratular-se por isso. Para que sirva de exemplo.

Mas eu diria, e para terminar, que tenho a sensação de que falta a tudo isto um grande “empurrão”. E esse grande empurrão tem de se chamar Brasil. O embaixador Alberto Costa e Silva, que está ali na primeira fila, tal como o “embaixador” José Carlos de Vasconcelos – a quem eu teimo em chamar embaixador pelo extraordinário trabalho que tem feito pela lusofonia - sabem bem que, sem o Brasil, sem um forte empenhamento do Brasil no quadro internacional, a promoção da língua portuguesa não dará passos concretos e fortes. Durante anos, e pela minha experiência, o Brasil não teve em grande atenção a expressão internacional do português, como um elemento prioritário para a sua afirmação externa. O facto de o Brasil ter agora nascido para uma visibilidade exterior completamente diferente daquela que tinha no passado começa a dar-lhe uma nova consciência quanto ao modo como deve utilizar a língua.

E como, como eu costumo dizer, não há nenhuma afirmação externa no Brasil, nomeadamente no aspecto estratégico como potência, que seja contraditória com a afirmação externa de qualquer dos outros países de expressão portuguesa, nomeadamente Portugal, parecem reunidas as condições ideais para trabalharmos em conjunto. E não nos podemos atrasar mais: a luta de afirmação cultural e linguística a nível global está aí, por exemplo na ocupação do espaço da Internet. Isso implica que devamos juntar todos os esforços no sentido de garantir que as expressões culturais em língua portuguesa possam trabalhar de uma forma mais organizada. Às vezes, nem sequer é preciso gastar muito mais dinheiro, é preciso é ter vontade politica para actuar conjugadamente nos fóruns multilaterais, é preciso ter vontade para não sublinharmos excessivamente aquilo que nos pode dividir, em especial as “bizantinas” questões em torno do acordo ortográfico. Esta parafernália de discussão sobre as maneiras diferentes de escrever a língua portuguesa é um debate inútil.

E, repito, seria muito importante que as embaixadas dos países de língua portuguesa recebessem instruções concretas para trabalharem em conjunto, para estabelecerem programas de promoção cultural conjugados, que pudessem pôr em evidência os seus romancistas e os seus poetas, que se exprimem nas diversas formas que pelo mundo a nossa língua toma.

Era isto que pretendia dizer-lhes, em função da minha prática como embaixador. Em síntese, que devemos, cada vez mais, jogar com verdade nas questões da promoção e ensino da língua e não nos deixarmos aprisionar por lógicas de natureza política, por comodismo e por falta de frontalidade.

Muito obrigado pela vossa atenção.


* Intervenção de improviso no painel "Diáspora e Emigração", no Encontro Internacional "Língua portuguesa e culturas lusófonas num universo globalizado", organizado pela União Latina e pela Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, em 25 e 26 de outubro de 2010.

3 de outubro de 2010

República e liberdade


Há já algumas semanas, o Presidente da Câmara de Vila Real teve a amabilidade de me convidar para intervir, falando da nossa República, por ocasião do descerramento de uma lápide junto à casa em que os republicanos de Vila Real se reuniam, faz agora 100 anos. 

No momento, eu não tinha a menor ideia onde essa casa se situava. Vim depois a saber que era na rua Avelino Patena, a velha “rua da Travessa”. Perguntei, então, qual era o número da porta. Hesitava-se entre o 44 e o 46. Dias depois, confirmou-se: era o número 44.

Fiquei satisfeito, porque essa foi, precisamente, a casa onde eu nasci. Quando o convite me foi formulado, ninguém tinha consciência desta espantosa coincidência. E, por esta razão, o convite deixou-me, como é natural, ainda mais feliz.

Celebramos agora o facto de, há 100 anos, a República, em Vila Real, ter também – se assim se pode dizer – nascido nesse lugar. A cidade junta-se, assim, a um conjunto alargado de celebrações que, um pouco por todo o país, marcam o centenário da revolta republicana de 1910.

Nessas comemorações, e talvez não por acaso, tem sido dada uma ênfase muito especial às caraterísticas do regime parlamentar que, depois de 1910, foi instalado em Portugal, por cerca de 16 anos.

É natural que a sociedade que emerge do ato revolucionário seja a primeira a ser identificada com esse mesmo ato. Mas o que já acho menos natural é que se procure colar, quase exclusivamente, a imagem da República às dificuldades e peripécias que ela viveu nesses 16 anos, não olhando, com o mesmo cuidado, para o percurso futuro dos ideais republicanos no seio da sociedade portuguesa, nos 84 anos que se seguiram a essa experiência.

Ao deixarmos que as coisas assim se processem, não estamos a fazer nada mais do que aquilo que o Estado Novo, e outros inimigos da República, não tenham teimado em fazer, ao longo dos tempos, com uma pedagogia negativa, de diabolização das ideias republicanas e de ataque às forças partidárias, que teve êxito na mentalidade de algumas gerações.

É um facto que a I República portuguesa criou um regime que veio a revelar-se instável – embora convenha dizer, desde já, que muita dessa mesma instabilidade acabou por ser provocada pelos inimigos da República, pelos derrotados do 5 de Outubro, e que, igualmente, nela se refletiu a caótica herança deixada pelo regime que nesse dia foi derrubado.

Há ainda que lembrar, porque alguns o procuram deliberadamente esquecer, que Portugal vinha de quase um século de objetivo declínio, enquanto país. A independência do Brasil, em 1822, que foi durante muito tempo a nossa verdadeira grande colónia, consagrou um momento de rutura, sem recuo, para os interesses económicos de Portugal. A morte do dom João VI marcou o fim do Antigo Regime, abrindo caminho a uma guerra civil muito sangrenta – a última que teve lugar em Portugal.

A vitória do liberalismo, no fim desse combate de alguns anos, representou a tentativa de implantar uma primeira gestão democrática, com escrutínio parlamentar. Esse foi um momento muito importante de colagem do país à modernidade política. Mas o liberalismo acabou por não representar a salvação automática da Pátria.

Todo o resto do século XIX, bem como a primeira década do século XX, correspondeu a um período de forte conflitualidade político-partidária, de grande instabilidade governativa, de emergência de novos atores económicos e sociais, todos com ambições de representação no seio do sistema. Os vícios dessa primeira grande experiência parlamentar foram descritos, de forma insuperável, por Eça de Queirós, que ganharia agora em ser revisitado.

Mas os políticos e os seus partidos não foram os únicos intérpretes da representação e da coreografia prevalecente no regime de então. A benevolência histórica dos portugueses tende, quase sempre, a absolver os monarcas de responsabilidades nos episódios mais negros que ocorreram nesse período.

Mas convém sermos claros, de uma vez por todas: a memória dos reis que alicerçaram a nossa magnífica História, e que ao país prestaram serviços extraordinários desde a nossa existência como nação, foi muito mal servida pelas figuras que o final da dinastia de Bragança proporcionou ao país, enquanto monarcas.

Nestes últimos anos, temos vindo a assistir em Portugal à emergência de uma certa historiografia revisionista e saudosista, que tem procurado branquear as responsabilidades dos últimos monarcas portugueses, atenuando as acusações à sua falta de liderança, explorando um certo “glamour” que, no imaginário popular, se associa às cortes, às princesas e aos reis. Essa escola de fabricação de memória, que tem estado particularmente ativa neste último ano – em livros, jornais e blogues –, esquece deliberadamente o triste alheamento de alguns desses monarcas perante a degradação do país, o seu diletantismo e desinteresse face aos principais problemas que então atravessavam a sociedade, os escândalos dos adiantamentos financeiros feitos pelo erário à família real, a cumplicidade de monarcas com golpes autoritários, bem como a sua anuência com medidas repressivas já pouco comuns na Europa constitucional da época.

Foi nesse ambiente, onde se refletia a crescente incapacidade da nossa Monarquia para representar os interesses coletivos da sociedade e para sustentar soluções políticas capazes de superar as suas divisões, que se foram criando as condições para o florescimento das ideias republicanas.

Antes de ser um sistema político, a República era e é um corpo de princípios. Em Portugal, o republicanismo foi uma linha de pensamento que assentou, originariamente, na afirmação de uma espécie de ética nova de cidadania – numa sublimação, muitas vezes um pouco caricatural e radical, de princípios de organização social e de representação popular que se pretendiam regeneradores da visível situação de declínio que o país atravessava. E essas ideias foram tendo um crescente sucesso na opinião pública porque a Monarquia – aquela Monarquia – se mostrava já claramente incapaz de pilotar uma saída política para a crise portuguesa.

Por isso, é importante que situemos o projeto republicano português no mundo desse tempo, marcado pela prevalência simplista de algumas ideias da Revolução Francesa, pela crescente popularidade dos ideários de libertação social, que faziam caminho fácil num novo operariado e em classes urbanas, que tentavam consagrar a sua emancipação política. O radicalismo, alguma crispação e muita agressividade, levados aos extremos e potenciados pela rigidez do sistema, passaram a fazer parte integrante dessa doutrina, com que se procurava consagrar uma nova legitimidade, que pretendia devolver a sociedade aos seus cidadãos.

Acresceu ainda, no caso português, a revolta pela humilhação provocada pelo imperialismo britânico em África – o “mapa cor-de-rosa” -, que deixara claros os limites da fraternidade que o Tratado de Windsor proclamava.

Por toda a Europa – e Portugal não escapou a isso – uma cultura de violência ligou-se, assim, à ação política. No nosso caso, o regicídio de 1908 foi o tempo mais trágico na expressão concreta dessa conflitualidade.

Quero com isto dizer que o regime que sai do 5 de Outubro é um sistema político marcado por uma matriz radical que havia sido aculturada nas últimas décadas de um modelo decadente e já sem saída. A prova provada de que o problema residia, então, na própria Monarquia portuguesa é o facto da República portuguesa, ao ser implantada, ter acabado por ser apenas o terceiro regime de matriz republicana existente em toda a Europa, depois da França, em 1789, e do caso muito particular da Suíça.

A chefia do Estado, em todo o resto da Europa, permanecia ainda titulada por reis. E esse ponto também é muito importante para se entender a dificuldade da nova administração republicana de conseguir a sua aceitação e reconhecimento internacional. A classe dirigente de uma nova República, surgida num país pobre da Europa, tinha grandes dificuldades em falar, de igual para igual, com Monarquias ligadas por regulares alianças familiares.

Com exceções a confirmar a regra, podemos dizer que os regimes monárquicos sobreviveram em países onde os respetivos titulares, em momentos decisivos da sua história, souberam colocar-se do lado certo, representando os interesses profundos das populações e as opções corretas para a estabilidade das sociedades. Se olharmos bem para a História, verificaremos que cada uma das Monarquias existentes na Europa se justifica pelo facto dos seus titulares conjunturais terem sabido, no momento certo, afirmar com dignidade os interesses do seu país e do seu povo. E, a contrario, verificaremos que a imensidão de países que deixaram de ser Monarquias adquiriram o estatuto de Repúblicas muitas vezes pelo facto do seus monarcas, em épocas decisivas, não terem estado à altura de situações com que foram confrontados. Esse foi, claramente, o caso de Portugal.   

Mas voltemos ao 5 de Outubro.

O novo regime republicano que dele sai identifica-se numa ideologia burguesa e urbana que eleva elementos tido como caraterizadores de emancipação popular – de que o laicismo e a aposta na instrução pública eram os vetores centrais – a uma espécie de dogmas de uma nova cidadania, para além do culto e promoção de valores de solidariedade e de responsabilidade.

Essa marca da República, expressa na tentativa de impor um choque cultural a uma sociedade fechada, predominantemente rural, com grande influência clerical e muito presa a um Portugal tradicional, acabou por ser a fonte de muitos dos erros cometidos pelo novo regime, que atropelou frequentemente, nesse caminho vanguardista, valores como a tolerância e o respeito.

A ele se opuseram, contribuindo também para a sua rigidificação, não só algumas expressões mais reacionárias da sociedade portuguesa – de que o fenómeno proto-fascista de Sidónio Paes é o exemplo mais flagrante – mas, igualmente, os radicalismos esquerdistas, nas suas expressões anarquistas ou tributárias da nova ilusão soviética.

Se a tudo isto somarmos uma entrada mal preparada na I Guerra Mundial, com o louvável objetivo de salvar o que restava do império e da partilha da conferência de Berlim, mas que acabou por potenciar a acrimónia nas Forças Armadas, veremos que estava a ser criado, crescentemente, um ambiente para colocar Portugal pela hora da onda autoritária que então já ia atravessando muito da Europa.

O golpe de 28 de Maio de 1926 é apenas o corolário da mudança na relação de forças interna e na crença da regeneração por via autoritária – é sempre mais simples governar quando se calam violentamente os adversários. E até reduzir o défice!

Mas há uma coisa que devemos ter bem claro: os 100 anos da República portuguesa, ou da República em Portugal, não se esgotam nem se identificam exclusivamente com a experiência parlamentarista iniciada em 1910, esmagada autoritariamente em 1926. A nossa República está muito para além desses seus 16 primeiros anos.

A República está bem presente em todos quantos lutaram nas trincheiras do 3 a 7 de Setembro de 1927, está nos combatentes exilados da Liga de Paris, está nas revoltas da Madeira, da Marinha Grande, da Mealhada, da Sé, de Beja, no assalto ao Santa Maria, nas audácias de Henrique Galvão ou Palma Inácio.

Está também na coragem dos que assinaram as listas do MUD e que, por isso, sofreram consequências em toda a sua vida futura.

A República está na vontade cívica que lançou as candidaturas de Norton de Matos, de Quintão Meireles e de Ruy Luís Gomes.

Foi a República que trouxe Humberto Delgado ali, à estátua de Carvalho Araújo – ele próprio um homem da República –, no final de uma manhã de 1958, de que fui jovem testemunha, pela mão do meu Pai.

Foi o espírito da República que sobreviveu e alimentou as lutas clandestinas que atravessaram o país durante as décadas da repressão do Estado Novo, nas prisões e nas deportações, de Peniche ao Tarrafal, nos exílios em França, no Brasil ou na Argélia.

Foram os ideais republicanos que mobilizaram jornalistas e escritores contra a censura, que estimularam as lutas estudantis e souberam criar uma espécie de contra-cultura que serviu de magma à mudança das mentalidades que foi fazendo o seu caminho nas novas gerações.

Foram os ideais republicanos que primeiro souberam evoluir, entre nós, na perceção da questão colonial, entendendo que os antigos paradigmas não tinham já espaço histórico e que era necessário respeitar o acesso dos outros aos direitos que para nós reclamávamos.

Aqui, em Vila Real, foram os ideais republicanos que, ciclicamente, mobilizaram, em condições de alguma perseguição e pretendido temor, algumas figuras de notável recorte cívico, aproveitando brechas que o Estado Novo por vezes se via obrigado a conceder. Quero lembrar, nesta ocasião, como símbolos dessa luta, os nomes de Otílio de Figueiredo e de António Cabral, que tive o privilégio de cruzar num desses exaltantes tempos da vida que valeram a pena.

E foram – uma vez mais – os ideais republicanos que animaram quantos, finalmente, se envolveram nessa aventura, magnífica e sem par, que foi o 25 de Abril.

De lá para cá, mais de 36 anos passados, continuam a ser os princípios republicanos a marcarem a nossa Constituição, a servirem de referente às liberdades que usufruímos, as quais estruturam o nosso sistema político, no qual se procuram, e serão encontradas, as soluções para a crises do nosso quotidiano.

A República, com todos os seus sobressaltos e problemas, continua a ser, entre nós, o outro nome da Liberdade.

*Transcrição da intervenção proferida em 3 de outubro de 2010, por ocasião do descerramento de uma placa alusiva à casa onde se reuniram os conspiradores republicanos, antes da Revolução de 5 de outubro de 1910